Um Olhar Sobre Um Olhar 

O sétimo mês de um ano ímpar - mesmo que 2020 seja par -- já estava terminando quando o fotógrafo e amigo, Rimene Amaral, me abordou via mensagem para dividir comigo as primeiras aspirações desta EXPOSIÇÃO, a qual cada um de vocês terá o prazer de admirar. Em tempos loucos como os de agora, regozijei-me precoce e privilegiadamente ao ter a oportunidade de contemplar a gestação de uma ideia, mesmo que em meio a um distópico auspício de morte pandêmica que, a propósito, seria correto afirmar ser o sêmen desta exposição. Não sei se concordam comigo, mas existem poucas coisas na vida mais bonitas do que o ato de observar um artista enquanto ele cria, ou testemunhar o parto de uma ideia. Portanto, em primeiro lugar: obrigado ao artista por nos presentear com vida, estamos precisando.

Eram apenas cinco das trinta e três fotografias que compõem a "Via Crúcis" de um homem solitário num mundo doente. 33. Significa? É claro que significa. O amigo me esboçou ainda a proposta da exposição num áudio, debalde, pois somente aquela pequena amostra já era capaz de dizer tudo o que ele tentou redundar. O olhar de um confinado é um título que parecia saltar aos olhos quando mirei as miniaturas das fotos, uma ao lado da outra na tela do smartphone. Arriscaria dizer ainda que a tela do aparelho parecia fazer parte da obra, pois, nas atuais circunstâncias, abordando essa multissimbólica temática, haveria moldura mais pertinente que a tela de um celular? Atesto: é uma exposição digital com porquê de ser.

Todas as fotos foram tiradas pela câmera de um Iphone 11, valendo-se apenas de luz natural, limitando-se ao expediente daquele que não teve dispensa do trabalho durante a quarentena: o Sol, suas chegadas e suas despedidas, os mormaços, a batida do ponto... Eu tenho uma propensão a enxergar dramaturgia nas coisas, então quando penso no ser observador cujas imagens dos olhos foram expropriadas, me pergunto o que esse homem via durante a noite que não quis fotografar. Não estou falando de segredos, mas dos silêncios, lacunas nos registros das madrugadas cujas taças de vinho não tinham pares para tilintar. E sim, penso num homem cisgênero, pois a surpresa e exasperação desse admirador ao de repente flagrar a si mesmo descobrindo essas minúcias não me parece coisa da natureza feminina. Acho que as mulheres já têm uma familiaridade com detalhes sublimes que, mesmo antes, no velho normal, nós homens ainda não conhecíamos e talvez ainda agora não conheçamos, com a exceção de alguns rimenes, perdidos aqui e acolá. Por conseguinte, não mais me demorarei nas conjecturas sobre o que ele não viu ou deixou de ver, porque o que há de mais belo e interessante neste retrato é justamente o que ele viu, e como viu, e por quê viu.

O eu-lírico das lentes do fotógrafo enxergou, através da aura sépia de um homem cheio de passado e com um futuro incerto pela frente, as pequenas coisas que talvez jamais fossem notadas se por ventura o destino não houvesse estagnado. A mim, parece que cada imagem mereceria um verso em trova, um bardo, daqueles que contam histórias reais. Algumas dão a clara sensação de que ele se deteve ao perceber algo incrível que nunca antes havia notado; noutras, talvez pareça - na ótica de quem não tem muita poesia atrás da pálpebras - que ele viu simplesmente por que tinha tempo para ver e não havia mais o que olhar; mas há ainda aquelas cenas que, de tão improváveis de terem sido dignas de atenção, sugerem que nelas residem lembranças que somente o dono dos olhos sabem quais são.

Um mundo em pequena escala se constrói em vislumbres, e na mesma medida em que a há a admirável intenção de notar as pequenas belezas e os detalhes recorrentemente ignorados, vejo também o reflexo da pequeneza existencial a qual o protagonista parece se reduzir ao evitar olhar para o mundo exterior, evitar focar as lentes nesta realidade selvagem que denuncia o quanto ele é pequeno, frágil e condenado a sobreviver. A palavra Wildness aparece carimbando algumas tiras, e essa selvageria é micro enquanto apreciação estética, ao retratar as miudezas selvagens de um ambiente doméstico, mas também é macro enquanto apreciação filosófica, ao imaginarmos o contexto psicológico daquele que vê. A persona desse observador é simplória, saudosa, positivamente melancólica e irremediavelmente escapista. E eu, por minha personalíssima vez, não pude deixar de identificar na natureza desses olhares a semelhança com o meu próprio espectro autista, e esse tipo de identificação na arte só é possível porque, acima de tudo, O olhar de um confinado é uma obra fotográfica que tem Alma - uma dessas que não estão confinadas. 

Marcos Paulo Moreira - ator e escritor

© 2020 Rimene Amaral / Goiânia - Goiás
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